quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Lembrete

No mais, tudo é menor

Amor não é de tarde, a não ser em alguns dias santos. Só é legítimo quando, depois, se pega no sono. E há um complemento venturoso, do qual alguns se descuidam. O café com leite, de manhã. O lento café com leite dos amantes. No mais, tudo é menor. O socialismo, a astrofísica, a especulação imobiliária, a ioga, todo ascetismo da ioga... O homem só tem duas missões importantes: amar e escrever à máquina. Escrever com dois dedos e amar com a vida inteira.

Antonio Maria, 1963.

sábado, 22 de novembro de 2008

Ah, a Modernidade

Estava na de andar sem juízo, desavisado, sem qualquer respeito pelas regras do bom caminhar, nada de direção, norte, compasso, com um ar que irritava qualquer um de bons-costumes, como se fosse dono de suas pernas, veja você, o despautério, quando se deu.

Se você perguntasse à maioria, teve o que merecia, nessas de andar assim...

Enfiou-se num buraco enorme, escondido dos homens de bem, numa fresta do que é reto. Caiu uma eternidade e meia numa escuridão sem ar, calor ou seja qual sensação fosse; o amortecer. Nem assim gritou, esperneou, caiu só.

Não caia no espaço, mas no tempo, ou pelo menos não neste sideral. O universo todo para o lado de lá daquele negrume sem fim a trilhar o curso; morriam, riam (alguns poucos), amaldiçoavam a chuva, as espinhas, trocavam de carro, de marido, faziam juras de amor, choravam o amor, combinavam cafés. E ele caia.

Foram 100.052 anos dos homens, suficientes para se perder o andar, o gosto do café ou do amor e até mesmo o que ele sabia por homem. Apagou-se da vida de quem fosse, um fantasma encarnado de gente sem nem saber dos costumes que pudesse desdenhar.

Um pouco sem jeito, num passo esquisito agora do atrofiado mais do que do descaso a regra, o primeiro lugar que tentou encontrar foi algum em que se encontrasse, aquele mundo distante de mil séculos atrás que tão incompreendia, mas que tinha de cor. Sabia bem daqueles olhares feios, o balançar rápido, pouco, mas sempre lá, da cabeça, os comentários abafados, os medos todos de quem ousava e dos que temiam até isso. Mas como culpá-los se todos imersos numa angústia enorme de agarrar os segundos saltitantes pelo pescoço, cheios de planos cortados a laser, mas cada um completa e angustiantemente perdido, confundindo necessidade com superficialidade, obstinação com neurose.

Agora era ele que se via perdido em qualquer senda do infinito, essa ou aquela realidade paralela, perpendicular ou espiralada, sem achar partícula que lhe fosse conhecida.

Em um misto de sonho do Dr. Seuss e a mais fabulosa mente hollywoodiana de ficção científica sem cortes de orçamento ou crise a limitar a criatividade, as pessoas que se iam para lá e cá pareciam como que iluminadas. Alguma aura de plenitude circundava a todos, que se riam por besteiras (todos eles), que tinham muito bem certo o que de fato significava besteira. Nada disso tinha a ver com o absurdo tecnológico ou qualquer outro candidato a bálsamo da humanidade, o estandarte mal ajambrado do progresso, quem sabe até de ordem, mas com o achar da essencialidade, do visceral. Em algum ponto distante do desencontro ancestral o caos veio de frente e ninguém mais conseguia falar bom dia sem que um milhão de interpretações fossem feitas, ponderações sopesadas, implicações projetadas, medidas e densificadas e só sobrasse tempo para um boa noite. Os arqueólogos buscam apresentar suas teorias, juntando pedaços de CDs antigos e pendrives recuperados, e de cada byte montam histórias colossais. Não se sabe mais por que, nem como, mas o fato é que de alguma forma conseguiram se desembaraçar daquele nó tão vivamente cultuado pelos que se diziam "modernos".

Recuperado do baque e das pernas, sassaricou por toda viela, biboca e quebrada, parando cada um que tivesse a sorte de cruzar os olhos com ele. Ninguém conseguiu explicar muito bem o que lhe tinha acontecido, nem o que aconteceu com os agora fósseis. Ninguém também mostrou muita lá preocupação com o causo, ou mesmo com os porquês. Para que se esquentar com isso, ouviu tantas vezes, se o que só é preciso é se permitir viver. Se permitir viver, sem os diz-que-me-dizem tanto, as fobias, encruzilhadas, retornos, atalhos, sem cobrança de prazos, metas, objetivos, como se a angústia do mundo tivesse sido geneticamente retirada de cada DNA de qualquer algo vivo, tendo bem a diferença sem fim entre responsabilidade e cruz. Enquanto ele recuperava o passo e se partia nesse mundo sem o rumo fincado a estaca, numa leveza de não sofrer para o onde, como e quando, marcados no script e distribuídos em cinco vias registradas, na liberdade de se deixar surpreender, seus companheiros de trabalho já organizavam reuniões periódicas, para se eleger o representante do grupo de buscas. Estavam na 25ª reunião, mas ainda tinham muito pela frente. Temas como a marca e intensidade do pó do café servido e se rodariam o ônus de oferecer a casa em sentindo alfabético ou zonal ainda não tinham sido enfrentados. Todos estavam ansiosos, na angústia de preverem que em 30 ou 40 reuniões a mais, teriam de contatar os familiares, e um subgrupo já estava se formando para determinar se seria a mãe, ou o irmão o primeiro a ser avisado.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

São Paulo III

De frente para um posto de gasolina, numa travessa tímida da Av. Sumaré, entre um prédio entediado e uma churrascaria/pizzaria/bar-dançante/karaokê de sextas e sábados, tem uma casa que de quartas-feiras a noite se ilumina de sala amarela alaranjada. De dama-da-noite vestido primavera, cerca de muro (baixo) e palmas abertas, se põe como velha sem se acabar, orgulhosa das rugas, de jardim a esbofetear a cara, ainda que com toda madura gentileza, deste caipira morador de apartamento que só faz imaginar como este pedacinho de cidade distante veio se encaixotar nesta cidade de tantos pedacinhos...