Não sei se foi o sono, ou se foi mesmo destino, afinal não se pode fechar os olhos para a tremenda coincidência. Em menos de 12 horas, ele bateria a mesma perna, e de novo, nalguma coisa dela. Andando para o fundo do café, ele nem viu a pasta colocada ao lado da cadeira. Foi um desastre. Antes a batida tivesse apenas machucado a perna que já estava sensível. Mas quando se pode ter resultados catastróficos, para que a simplicidade? A pasta escorregou pelo salão, parando apenas no garçom que trazia o café preto, sem açúcar, e dois pães de queijo que ela sempre pede. Com os olhos fechados para impedi-lo de assistir o desastre, ele viu só resultado. Um garçom estirado no chão, atônito pelo surgimento de uma pasta expressa fazendo caminho no meio do salão, um café esparramado e dois pães de queijo rolando para baixo da mesa. Ele púrpura de vergonha pede desculpas para a moça, para o garçom, para os demais telespectadores e não sabe se devolve a pasta, levanta o atendente, procura pelos pães de queijo ou corre desesperado até a cidade vizinha e nunca mais volta naquele café. Enquanto olhava para a porta, calculando a velocidade média necessária para uma fuga perfeita, o garçom já tinha se levantado e ela, olhando para aquela figura desolada, pergunta se tinha doído. Nunca conseguiu entender o porquê da pergunta. Não era de conversar com ninguém, muito menos com alguém que chutasse sua pasta e derrubasse seu café. Mas alguma coisa naquele rosto triste, naquele ar de desamparo a despertou. Era como se pela primeira vez tivesse olhado no espelho e visto nada mais que tristeza. Ele demorou para entender o que acontecia. De todas as alternativas previstas esta nem sequer passou pela sua cabeça. Olhou para aquela mulher bonita, que se esforçava para contrariar essa natureza a todo custo e, sorrindo pela primeira vez em dois dias, disse não. Senta, convidou ela desacreditando nas próprias palavras. Assim você me paga o café que me fez perder. Sentou. Pela primeira vez estava no lado oposto de uma mesa com outra mulher que não a sua primeira namorada, sua noiva, sua ex-mulher. No momento estava perplexo demais para se ver planejando alguma coisa e acabou por ser ele mesmo. Conversaram por duas horas. De frivolidades climáticas a confidências metafísicas. Mas nem um nem outro conseguiu falar de suas experiências românticas. Como se diz que seu casamento acabou porque sua mulher resolveu se entreter de outro alguém? E pior, como se diz que se passou a vida inteira sem nunca amar ninguém? Era já quase nove horas da noite quando ela caiu em si. Assustada com aquela rebeldia contra o cronograma tradicional ela resolveu voltar para casa. Se despediram na porta, ela chegou a oferecer uma carona, mas ele queria voltar à pé. Ela não conseguia se lembrar da última vez que tinha chegado tão tarde em casa, muito menos porque se perdeu conversando com alguém. Já ele tinha esquecido como era conversar. Seu casamento nos últimos anos se resumiu a grunhidos. Sua ex-mulher malmente o olhava, quem dera falasse com ele. Os dois dormiram como nunca. E enquanto ela cumpria sua rotina pela última vez, ele se refestelava na piscina, agora sem tentar nada mais do que se enrrugar. Depois do trabalho, correu para o café, sem nem perceber que a força que a impulsionava naquela tarde não era a rotina, e ele já estava lá. Ele nem precisou convidá-la. Ela foi direto à sua mesa. Ainda não tinha explicação para tamanho atrevimento. Agia pelo impulso que desconhecia. Impulso esse que, também pela primeira vez, movia aquele romântico desfalecido. Algo nela o acalmou. Quem sabe a dor na perna ou o furacão que revirou sua cabeça tivessem anestesiado seu ímpeto projetista. Dessa vez o assunto foi inevitável. Ele foi o primeiro a desabafar o desastre amoroso. Destapou a falar, do primeiro encontro à noite do dia 31. Ela não demorou muito a contar a história de sua vida amorosa.
Nunca teve uma. Pulou de um relacionamento para o outro sem nem vive-los. O trabalho a consumiu por inteira, não deixara nem uma força para outra coisa, mentia-se ela. Quando ela terminou, perceberam que, de formas tão distantes, chegaram no mesmo fim. Nenhum nunca tinha realmente amado. Ele porque perdeu todo o tempo planejando o que deveria ter vivido, ela porque não viveu qualquer coisa fora de seu escritório. Não sei te dizer como. Nem eles sabem. Se foi o fim avassalador que imobilizou a mania dele de só sonhar, se foi o olhar triste que fez ela se reconhecer, se simplesmente foi. Sendo qual motivo fosse, naquela noite do dia 2 de janeiro de 1996 ele aceitou a carona e às 10:00 da manhã seguinte, nenhum deles tinha acordado.