Rita Maria não gosta de madeira. Madeira é coisa que demanda. Assim, inexplicavelmente, vai no de deixar de lado o que é de desgosto da vida e segue o rumo no que merece ter rumo, aproveitado o bom de todas as coisas. Rita Maria é daquelas que tem o simples na lida. Não se encasqueta de ser hype, cool, de ler Bravo, comer temaki, ir na mostra, seja o que se tiver sendo mostrado. Não tem de fricotes, não se apoquenta com questiúnculas de quanto tempo se demora para chegar no restaurante sensação da semana, ou quantos meses de antecedência se tem de reservá-lo. Não liga em não ter Bistrô na sua cidade, ou Cinemark. Rita Maria nunca deve ter ido ao cinema ou comido escargot, o que pode parecer um absurdo, um despropósito sem graça de se ter como vida, ou em se não ter nela. Rita Maria nunca demorou 45 minutos para reclamar com o atendente daquela operadora sobre a conta que foi para o lugar errado, perdeu-se toda, e agora o Serasa está a mandar notificações, extra, intra, sub judiciais. Nunca na vida falou com um advogado, precisou de um advogado, nem sabe do ruim que advogado é. Não teve de pegar uma lotação e compartilhar essa experiência como mais 68 pessoas num dia de chuva, todos cara de bolor e guarda-chuvas em punhos para espetar o primeiro espertinho que se dignar a cruzar o olhar. Nunca se prestou de correr por uma avenida emparedada por carros, achando fazer bem a saúde. Maria Rita não sabe o que significa, nem nunca ouviu de um amigo a palavra stress. Enquanto os urbanóides que somos agradecemos o Starbucks de cada dia, entre dentes e de cara amarrada, Rita Maria acha graça da madeira que segura tua casa beira-mar numa cidade escondida do Ceará, num azul sem fim de todos os tons de grudar a palavra paradisíaco no lóbulo frontal. O pior é que se fosse você, ou eu, ralharíamos pela madeira, pela falta de café latte, por não ter nenhum sushizinho na redondeza, pela maresia, a areia, o sol. Acho que fomos demandados demais. Acho que demandamos muito.
terça-feira, 13 de janeiro de 2009
on demand
São Paulo IV
Um centro de choro cantado, a te inundar de felicidade, entre um gole de frango e um pedaço de cerveja, de frente para a bolsa, rodeado de Jorges nem todos santos. E eles chamam isso de sábado à tarde.
terça-feira, 6 de janeiro de 2009
A última noite de um homem
baseado em uma história real
Marco Antônio é trabalhador. Passa das suas 24 horas, 10 no trânsito e 18 no escritório, façanha que só trabalhadores latino-americanos e uma ou outra propaganda de banco conseguem. Careca sem nunca ter tido genética que lhe fardasse a falta, arcado pelos ombros pesados de uma inércia que parece aumentada cada vez que Maria Eulália, da contabilidade bloco "c", às 15:25 de todo dia, resolve trancar o ar condicionado a agradáveis 25ºC. Chegado da provação automotiva, gravata dependurada pelo sedoso do desespero, Marco Antônio se enfia no seu loft (maneira bacana de vender alguma coisa que não tem espaço para ter nem quarto, nem sala, nem nada e que chamar de apartamento é, até mesmo para as empreiteiras, sacanagem demais, já que uma palavra enorme para simbolizar coisa desse tamanho).
Chave no chaveiro, paletó no cabideiro, sapatos no sapateiro e Marco Antônio se aboleta por alguns minutos de frente à televisão, para o ver de outras desgraças que não as próprias, retumbantes em voz grave de 19 horas. Ouvida a voz do Brasil, vai preparar seu jantar, esquentando alguma coisa que sobrou da última vez que teve forças para de fato cozinhar, e não se valer de sobras, enlatados, encaixotados ou outro placebo culinário.
Quando já tudo na sua devida panela, todas no fogão, Marco Antônio faz a decisão que mudou sua noite, não, sua vida. Encasqueta de lavar as mãos pela 35ª vez na pia do banheiro ao invés de se valer do detergente neutro mesmo. Seria transgressão demais para este cidadão pagador de seus impostos, amante de planilhas e avesso a qualquer ato de rebeldia ou enfrentamento que ultrapasse o dormir sem meias, o mandar às favas essa imposição moderna de se ter de usar cada coisa com um específico e único propósito, como se o mundo fosse confeccionado para cada detalhe e suposta necessidade, de sabonete adstringente hidratante de rosto tipo semi-oleoso a bucha para copos fundos de bordas finas exclusivos para cerveja pilsen que não européia.
Foi ao banheiro, pegou o sabonete para mãos secas quando, olhando entre o porta-revistas e a lixeira para banheiro tamanho pequeno de tampa basculante, viu algo que não devia estar ali. Sem querer acreditar muito, Marco Antônio chega um pouco mais perto do que devia do algo estranho ao seu banheiro branco ascético e com os olhos fixos por todos aqueles segundos tem a comprovação que não queria ter tido, quando a coisa mexe das suas anteninhas. Era uma barata. Marco Antônio não gosta de baratas, Marco Antônio tem asco, repúdio, medo mesmo, de baratas. No mexer perto demais daquelas malditas e irritantemente finas e compridas antenas, Marco Antônio faz pular o sabonete para mãos ressecadas pelo ar de seu banheiro conjugado a quarto e sala e o revolucionário do utensílio higiênico, subvertendo sua única finalidade, acaba a se valer para pôr Marco Antônio ao chão, ainda mais perto do que devia da barata.
Barata e Marco Antônio ambos descontrolados se debatem no meio metro quadrado de banheiro, tentando se recuperarem do susto de terem um mamífero e um invertebrado, cada um, dividindo o ladrilho.
Passados poucos segundos de terror, Marco Antônio conseguiu reaver os movimentos das pernas, e se pôs logo de pé, procurando por onde tinha ido a infeliz da barata, para tentar ficar o mais longe possível. Nada. Era a brecha para recuar até campo mais seguro e achar qualquer coisa que pudesse ser atirada de longe contra o inimigo. Como posso com isso, se até bomba nuclear não mata, pensou Marco Antônio, quando procurava pelo sapato mais pesado que tinha. De botina para dias de campo e clima enlameado em punho, foi o infeliz a procura do desafortunado do inseto. Logo na mini sala, entre mesa e sofá, estava lá, olhando destemida, toda antenas, quando em um instinto primitivo de milhares e milhares de anos de ataque e proteção contra os infortúnios da natureza, Marco Antônio deixou de lado o asco, o nojo, o medo mesmo, e se foi para o confronto direto. Nem barata nem Marco Antônio desviaram sua rota, inexplicavelmente. Barata anda cada vez mais descarada nesses dias, é essa impunidade toda, ralhou o primata. Deu todas as botinadas que pôde dar, no caso duas lançadas à distância e a barata sobreviveu a todas, o que não se pode dizer do seu vaso de cristal húngaro para dias festivos e finos e dos porta-cds empilhados no único espaço livre entre mini system e hack para televisão. Voaram trilhões de minúsculos caquinhos por toda a sala, o que não é difícil, mas ainda assim irrita, misturando-se na balburdia das centenas de CDs espalhados pelo chão, acabando com horas de organização alfabética e zelo no trato da superfície argenta-espelhada dos redondinhos queridos. Se a carcaça deixasse, Marco Antônio veria a barata se rolando de rir do episódio e da vantagem estratégica da criação de inúmeras trincheiras de plástico, com o benefícios de um campo minado de mil cacos a intimidar o inimigo. Se limitou só a rir e a se esconder, deixando o civilizado do morador emputecido o suficiente para destituí-lo de qualquer senso de limite, razão ou adequação. Já nas tampas, olhando para todos os cacos, todas as capas, CDs e barata, de novo, sumida, Marco Antônio perde o contato que tinha com a normalidade dos homens e faz de seu fim o fim da barata. Munido de martelo para pregos anelados 19x36 passou a marretar toda a sala/quarto, já sem nenhum carinho por CD que fosse, nem mesmo pela coleção de pequenos animaizinhos de porcelana dispostos na terceira prateleira de cima para baixo, pelo carpete de madeira imitação imbuia, por nada. Tudo era uma imensa barata, a ser aniquilada. Foram muitas, foram várias as marretadas, e a única coisa que Marco Antônio conseguiu foi a completa destruição de todos os badulaques acumulados pelos anos e a ira dos vizinhos, que já ligavam para a polícia, para o Juqueri, para o que viesse primeiro e mais armado.
Os bombeiros chegaram 15 minutos depois de Marco Antônio ser levado sedado para o Hospital Psiquiátrico de Franco da Rocha, após ter levado abaixo três enfermeiros, duas vizinhas encheridas e o poodle do flat 32 B. Tiveram um pouco de dificuldade para acalmar as chamas propiciadas por uma quantidade nunca vista de inseticida e fluído de isqueiro, último ato livre que Marco Antônio teve em vida, hoje bem instalado num 2x2 acolchoadamente aconchegante, de vizinhança tranqüila.